26 de março de 2001

PEQUENO AUTO-RETRATO

Para Priscilla Porto

Por que eu sempre fico constrangido quando me chamam de poeta? Por que os gatos me transmitem tanta dignidade? Por que eu nunca consigo sair de casa sem esquecer nada, e ter de voltar várias vezes? Por que eu não gosto de doce na comida, exceto banana? Por que eu não consigo ler só uma parte do jornal? Por que eu gosto dos domingos? Por que minha mãe colocou meu primeiro nome de Junior? Por que ler para mim é tão essencial quanto respirar -- e escrever, não? Por que acordar cedo, pra mim, nunca foi natural? Por que eu não suporto o silêncio, não aguentando uns poucos minutos durante o dia sem o barulho do rádio ou da tv? Como é que eu consigo abandonar a leitura de um livro que estou gostando, sem terminá-lo, para ler outro? Por que eu gosto dos dias nublados e chuvosos, e não dos quentes e ensolarados? Como é que um dia eu já não gostei de Dorival Caymmi, Djavan e Tom Jobim, e agora gosto? Por que eu nunca consigo ver a lua direito? Por que eu lavo tanto as mãos? Por que eu não gosto de (meu) cabelo? Por que eu não gosto de espelhos? Por que eu sou tão caseiro, sentindo que o meu lugar é em todos os lugares, viajando? Por que eu não sei qual foi a minha primeira vez? Como é que eu conheço tanta gente e não tenho nenhum amigo? Por que eu não gosto de crianças, principalmente bebês? Por que eu tenho a impressão de que não vou morrer velho? Por que eu me emociono mais com a ficção do que com a realidade? Por que eu não vejo os animais como inimigos naturais? Por que sempre que eu tropeço eu dou uma corridinha? Por que eu gosto mais do som das palavras do que do seu significado? Por que eu tenho tanta vontade de usar barba, e não uso? Por que eu nunca toco nas pessoas, naturalmente? Por que eu lembro tudo de uma pessoa conhecida, menos o nome? Por que eu também penso que "o belo da vida ainda está pra nascer"? Por que eu vivo anotando frases, pensamentos e versos, recortando e guardando reportagens, crônicas e fotos -- para quê, para quem? Por que eu nunca lembro se almocei? Por que nunca mais passaram Love Story na televisão? Como é que eu conseguia escrever poemas tão longos? Por que eu só durmo com o rádio ligado? Como é que eu consigo viver sem visitar ninguém, e sem receber nenhuma visita? Por que eu só consigo pensar no dinheiro como investimento e nunca como economia? Por que eu acho que, se não fossem pelos discos e imagens históricas, eu nunca acreditaria que os Beatles e o Pelé tivessem existido? Será que algum dia eu vou entender a expressão "bacia das almas"? Por que eu nunca espero o pior das pessoas? Por que eu escrevo com a mão direita e chuto com a perna esquerda? Por que eu prego as minhas contas a pagar na parede, à altura dos olhos? Por que eu sempre acordo de mau humor? Por que eu só durmo de lado? Por que eu não nutro nenhuma esperança pelo futuro da Humanidade, achando que os excepcionais, os gênios, os poetas serão sempre minoria neste mundo?